terça-feira, fevereiro 14, 2006

Lendas de Morfina...


Ao soar da primeira badalada do sino da igreja da Sé, já era possível perceber que algo de sobrenatural acontecia. Um vento gélido e úmido varria as ruas, onde geralmente soprava uma brisa suave e agradável, com uma força capaz de arremessar qualquer pessoa ladeira a baixo, aliás, ladeira era o que não faltava naquela cidade. E era no alto de uma das mais íngremes que eu enfrentava um desafio pessoal.

Parado ali, esperando pela coragem que sempre me faltara, eu, um garoto de cabelos cuidadosamente penteados, dei a primeira pedalada rumo àquela que seria a superação de mais um obstáculo entre tantos outros não superados em minha vida. Durante os primeiros segundos da descida, eu que nunca ousava ir além das minhas capacidades, ouvia os gritos dos outros garotos ecoarem no alto da Sé. Quanto mais velocidade atingia com a minha bicicleta, mais eu ouvia os gritos que desde sempre me acovardavam. Porém desta vez seria diferente, estava certo de que minha vida mudaria drasticamente a partir do momento em que chegasse ao final daquela ladeira. E isso me enchia de coragem. Mas teria sido coragem mesmo que me impulsionara a cometer aquela loucura? Estaria realmente ciente do que estava fazendo? Bom, na verdade não deveria taxar de louco aquele que busca superar seus limites, mas neste caso... Se você estivesse lá, você provavelmente reprovaria aquilo que eu estava fazendo.

O sino batia pela segunda vez, enquanto eu já atingia o meio do caminho na ladeira da misericórdia. A expectativa de uma chegada desastrosa crescia à medida que a ventania intensificava a sua força. Agora eu já não tinha mais controle sob a bicicleta, estava numa velocidade incrível e para mim só restava tentar manter-me em equilíbrio desviando de buracos e pedras que surgiam em minha frente. Qualquer descuido poderia levar a um acidente de proporções gravíssimas e se tal desventura de fato viesse a acontecer, quem seria eu então? O eterno covarde e motivo de zombaria por ser tão temente aos pais? Isso eu não poderia deixar que acontecesse, mesmo que meus atos momentos antes desta minha aventura fossem contra tudo o que diziam a meu respeito. Eu precisava provar que era capaz de ser como qualquer garoto da minha idade.

A verdade é que ninguém sabia dos reais motivos por trás dos meus modos de agir, mas eu sabia muito bem... Só eu seria capaz de dizer o quanto custava não seguir uma ordem ou o quanto doía fazer aquilo que fosse de minha própria vontade. Somente eu poderia dizer que conseqüências resultariam daquele ato insano que havia cometido momentos atrás. Isso, claro, se chegasse inteiro ao final daquela descida, o que seria muito difícil de acontecer, eu diria.

Ouvi então o terceiro badalo do sino da igreja da Sé. Eu parecia voar, tamanha a velocidade em que descia aquela ladeira. Já não sentia mais nada além do vento forte que assanhava os meus cabelos e a chuva fina que parecia furar-me o rosto. Estava perto do final da descida e o medo era tudo o que me restava naquele momento.

Havia percebido que não teria tempo suficiente para frear. O sino tocou uma quarta e última vez quando atingi o final de minha aventura. Eu não via mais nada agora... E na cidade pairava um silêncio como nunca houvera antes.

quinta-feira, fevereiro 09, 2006

Certa noite...


Quantos rostos estranhos ele cruza pelo caminho por dia é impossível contar, porém aquele que no meio da noite derramara uma lágrima solitária num banco de ônibus o intrigou como nenhum outro. E durante toda aquela viagem numa estrada cheia de buracos ele tentou penetrar-lhe os pensamentos. Seu olhar era descomprometido e disperso a tudo o que se passava no interior do veículo, no entanto o mundo através da janela, aquele que passava numa velocidade alta acima das onze da noite, exigia-lhe toda a atenção. Por um momento cada poste luminoso parecia obrigar-lhe a mover quarenta e cinco graus o pescoço, o vento invadia violento a janela agitando forte os seus longos cabelos negros presos num elástico e aquele ritmo constante deixou arrebatado aquele que o observava duas poltronas atrás.

E o motivo daquela lágrima continua secreto, obscuro... Tanto quanto o dia em que ele cruzará com aquele rosto outra vez.